quinta-feira, 8 de junho de 2017

Sonhos na palma da mão  


No sonho, a liberdade 

Uma história – como a sentimos?

Como semente. Uma semente que cresce connosco e nos faz crescer. Estes «Sonhos na Palma da Mão» pagam, de certa maneira, o encanto que me deram «A Rapariga dos Fósforos», a «Sereiazinha», «O Patinho Feio», «O Rouxinol». Longe, na infância. Com as suas sombras e claridades — Andersen nunca mentiu a vida e soube sempre aliar beleza e sofrimento — rolavam sobre mim, como berlindes mágicos, percorriam-me os cantinhos da alma, abriam portas secretas, permitiam-me respirações, outras, que nem sabia. Uma dimensão, cujo bafo tento, aqui, passar a corações com olhinhos interiores. 

"O pássaro não era maior do que a falange do dedo polegar. Tão delicado, tão delicado e pequenino, que a menina quase receava tocar-lhe — e a maior parte das vezes só o fazia com o olhar, deixando-o no longo alfinete, espetado no raminho seco da estante de livros do quarto da avó. Sim, porque as meninas ainda costumam ir a casa da avó, mesmo sem cestinho de bolos, sem capuchinho encarnado, sem lobo, nem floresta. Só de autocarro. Era esta uma menina atenta e curiosa e tinha perguntado logo donde viera o passarinho. 
— Da China — respondera, breve, a avó, que escrevia uma carta. 
— Ai, é um rouxinol? — insistira excitada, pois a avó tinha-lhe lido «O Rouxinol» de Andersen e da China era só o que sabia e mais amava. 
Mas a avó, esquecida da história, estranhara simplesmente: 
— Um rouxinol?! Porquê um rouxinol?... Não parece. Lembra mais um pisco, por causa do papinho vermelho... Olha aqui — puxou a enciclopédia e deixou-lha aberta na página colorida das aves, enquanto voltava à escrita. 
Passado pouco tempo, a menina tornou: 
— A China é grande, vovó? 
— Imensa... — e a avó abriu totalmente os braços para mostrar a impossibilidade de a abarcar. 
Grande, grande, percebeu a menina. Curioso, mas dava pássaros pequeninos. 
— Como o mar? 
— Ai que marota, que não me deixa acabar a carta!... Como o mar, não. O mar é maior do que toda a terra e a China é menor do que o Canadá, um país onde há muita neve e gelo... 
Ah! Não era fácil. Era preciso comparar... 
— E há rios na China? 
A avó rira. Claro que havia rios e um deles era o rio Amarelo... 
E a menina imaginou um guache espesso de sol derretido, a correr entre montanhas azuis, nas margens, espadas verdes de bambu, que também sabia, ordenadas como exércitos. Complicada a China. E como a avó saíra do quarto para atender o telefone, o seu interesse regressou ao pássaro. Olhou-o uma vez mais. A cabecinha e as asas eram de uma só pena, cor de pinhão, anegrada no leque do rabinho. Os olhos, contas de missanga miúda, estavam aprisionados em círculos branco-giz, desenhados a pincel. O papinho era preciosa seda vermelho-sangue. Que lindo era! Quem o teria feito, com amor e agulhas minuciosas? Muito desejava sabê-lo. Como se hesitasse em erguer voo estava pousado num ninho de raminhos secos, espiralados, de sementes mortas. E nesse ninho passou a chocar os sonhos da menina. 
Agora, sempre que ela dormia em casa da avó e naquele quarto pedia-lhe, mudamente: 
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na minha mão! 
Depois, já deitada, só com a grenha dos caracóis fora da roupa, muito aconchegada, esperava que o sonho a visitasse. Mas como queria também ajudar, começava a cerzi-lo com os vagos fios do que sabia: aquele tamanho grande da China, o rio Amarelo... até que abandonava tudo e se situava apenas no longe, sem lugar certo. Então, via surgir o palácio daquele imperador que tinha no seu império um rouxinol que conseguira livrá-lo da morte e todas as noites cantava para ele, perdoando-lhe tê-lo substituído por um pássaro mecânico.  
Aquela história continha toda a China para a menina. E ela sabia o palácio todo de porcelana, irisada, como feito de frágeis asas de borboleta, doirado pelo sol, que se reflectia nos lagos de cristal despolido pelas sombras da floresta e morria, longe, flor rubra, na linha do mar, onde o pescador lançava as redes. E, pelos caminhos conhecidos da história, chegava aos canteiros onde as flores não tinham uma placa de zinco ao pescoço, como as do jardim botânico, onde a avó a levara, mas guizinhos de prata, que com o seu tlim! chamavam a atenção dos distraídos para a beleza cetinosa das suas pétalas, para o seu perfume doce, para os seus brilhos vários e coloridos. Era ali naquele mundo encantado que o pássaro tinha nascido. 
Que rumores eram aqueles? Parecia-lhe sentir passos apressados no interior do palácio e no jardim andavam jardineiros a distribuir lanternas e a pendurá-las em árvores anãs. Havia com certeza uma festa. Num canto, numa espécie de pagode, com um telhadinho de abas graciosamente erguidas, uma dama costurava. E como se tivesse receio de que a noite descesse antes de acabada a sua tarefa, os seus dedos longos, como pétalas frágeis, afeiçoavam apressados e com pontos miúdos um corpinho de pássaro.  
A menina espreitava, interessada. A dama estava a pregar-lhe a missanga dos olhos. Depois, com delicadeza, aprisionou com um pincel os olhinhos em círculos brancos. Estava pronto. Aliviada, a nobre dama do palácio fechou o estojo de costura, guardou os pincéis numa caixa de charão e com uns passinhos miúdos, correu em direcção ao palácio. Mal chegou ao seu quarto, poisou o seu tesouro em cima da cabaia negra, já estendida sobre a cama. Que sucesso ia fazer! Ia lançar a moda dos pássaros!  
E, como a menina imaginava pela imaginação da dama, sentiu que todas as outras iam morrer de inveja, agora que o pássaro mecânico do imperador do Japão estava na moda, quando ela entrasse na sala do trono. Aquele vermelho cintilante do papinho brilharia como um rubi na seda negra da sua cabaia, pois tencionava fechá-la com ele. A dama não podia esperar mais e tão impaciente estava que começou a pintar o seu rosto de «biscuit» transparente.  
Por fim vestiu a cabaia de seda. Não precisava de perguntar ao seu espelho de prata se haveria alguém mais belo, porque o espelho devolvia-lhe um rosto-flor a emergir do cálice de seda negra do colarinho, onde o pássaro fazia nascer um botãozinho de sangue. A dama sorriu à sua imagem. Parecia uma estampa delicadamente laçada. E assim se deixou ficar em muda contemplação. 
O palácio começava a estar iluminado por mil luzes e as paredes brilhavam como as paredes do samovarzinho de porcelana da avó, quando ela lhe acendia a lamparina. Sons musicais, pingentes de água e cristal ecoavam pelos jardins, onde os balõezinhos festivos começavam a acender brandos crepúsculos, nas ramagens anãs. E naquele mundo feérico, recortado pelas mágicas sombras do jardim, se fechava o sonho da menina, que adormecia profundamente. 
Depois, entre as tarefinhas da escola: colagens, picotados, cantares, e o brincar acordado do dia-a-dia, a menina começava a pensar que na história que a avó lhe lera, não se falava de nenhuma dama do palácio. E se na história não havia uma dama como podia o passarinho ter sido feito por ela? Então a menina apagava aquele sonho. Quem o tinha feito tinha sido com certeza a criadinha — a que sabia o rouxinol verdadeiro e fizera descobrir o seu canto, que arrancava lágrimas aos conselheiros do imperador.  
Tinha sido com certeza ela. E a menina dirigia o seu coração e pensamento para outros rumos. Quando voltava a casa da avó já levava a semente doutro sonho, que punha a chocar no ninho do pássaro. Antes de adormecer olhava os seus olhinhos, quietos, de missanga miúda, aprisionados pelo branco-giz do pincel, e pedia-lhe uma vez mais, no segredo do seu desejo:  
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na minha mão! 
E, pelos caminhos do imaginário, depressa, depressa, instalava-se naquela China, onde as raparigas se chamavam «Chuva de Primavera», «Orquídea do mar» ou «Lua de Outono», mas desta vez afastava-se do palácio de porcelana, adormecido entre as flores tilintantes, embrenhava-se pela floresta e procurava a casinha à beira do mar. E, em bicos de pés, espreitava pela janela. A criadinha cortava um retalhinho de seda vermelha do quimono do imperador, que o alfaiate lhe dera, e afeiçoava-o a um corpinho de menos de beija-flor. E mesmo instalada na bolha de cristal azul da noite (coisas de sonho!) ouvia tudo o que se passava dentro de casa. 
— Filha — ralhava, meiga, a mãe — que estás tu a fazer? Sacrificas os olhos depois do trabalho, para quê? 
— Não se aflija... Faço um passarinho para a nossa janela. Verá que, quando estiver pronto e espetado ao pé da flor do vaso, há-de atrair o sol, que virá fazer-lhe companhia, enquanto trabalho no palácio... 
— Tonta!... A minha alegria és tu. A tua lida começa antes do sol se erguer e só termina quando ele se apagou há muito. Tu és o meu sol, vai descansar! — pedia a mãe, ansiosa, com receio de ver adoecer o seu único amparo. 
— Mas isto não é um trabalho... é um gosto, mãe. Verá como vai ficar bonito... 
— Tonta, minha tontinha!... 
— Por hoje faço-lhe a vontade. Vamos, então, descansar... Amanhã continuarei... 
Nos sonhos, os amanhãs e as noites sucedem-se num piscar de olhos. E a menina, sempre do lado de fora da janela, seguia aqueles serões e via nascer o passarinho até que finalmente ouviu a criadinha dizer: 
— Veja, mãe, não é lindo? Não poderá cantar como o rouxinol da floresta e, por isso, fiz-lhe um papinho vermelho-sangue, que será o seu canto mudo. 
— Como é belo! — exclamou extasiada a mãe. — Nunca tive um presente tão belo! 
A menina olhava também, pela janela, aquele corpinho minúsculo e gracioso —  outro e o mesmo do quarto da avó —  enquanto a lua de Outono subia no céu e tornava de prata as ondas que vinham quebrar-se na orla do mar. E o seu sonho fechava-se, porque ela era pequenina e não resistia àquele embalo das águas. 
Ao acordar e durante dias, aquele sonho parecia-lhe possível e dava-lhe abrigo no seu coração – até que começava a pensar se a história do passarinho não seria outra. Lembrava-se 
das princesas encantadas que os príncipes libertavam noutras histórias da avó. Lembrava os presentes que havia nessas histórias: 
— Ai fita, fita! ai pente, pente! da minha amada que está doente... 
Talvez o passarinho também fosse um presente de amor. Não fita, nem pente, mas pássaro. Seria? Quando voltava a dormir no quarto da avó olhava, longamente, o corpinho frágil, que oscilava no alfinete entre flores secas, e voltava a pedir, numa intimidade sem voz: 
— Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na minha mão! 
E aquela China de sonho, a da história que amava, começava a nascer. Só que o palácio de porcelana e o jardim de flores tilintantes ficavam quase escondidos entre a massa da floresta, pois os via do alto mar, do barco do pescador. Com a sua vela-asa agitada pelo vento — singrava em direcção a terra por entre ondas azuis com recorte de berço, como as dos desenhos que fazia na escola.  
Àquela hora, aquela que o pescador amava, trabalhava ainda no palácio, mas em breve estariam juntos. E ele aconchegava ao peito o presente que lhe trazia. A pesca tinha sido abundante — os deuses fossem louvados! — e tinha-a ido vender a uma aldeia ribeirinha e próxima, onde havia festa no templo. Por causa da solenidade do dia muitos se tinham permitido um luxo de peixe fresco.  
— Ora — diziam — as luas também têm as suas diferenças.  
Depois da venda, juntara-se à multidão para ir ao templo queimar incenso, grato pela sua boa sorte. E fora precisamente à saída do templo, entre o movimento alegre das cabaias, que os seus olhos descobriram o passarinho, no tabuleiro do vendedor. Que delicado era! Mal o vira com o seu papinho vermelho, pensara nela e na cascata negra do seu cabelo, que uma vez se desatara na floresta e ela voltara a torcer como uma meada de seda. Agora, aquela seda nocturna podia ela  rematá-la  com aquele gancho-passarinho, que lembrava uma jóia. O vento impelia o barco — embora menos velozmente do que os desejos daquele coração ansioso.  
Mas finalmente, colhida a vela, o barco varado na enseada, liberto, o pescador seguiu apressado o caminho da floresta — o caminho dela para regressar a casa. O sol já se tinha posto e as primeiras estrelas faziam lucilar o seu oiro num azul ainda aguado, acima das árvores, que eram já um túnel escuro, onde o canto do rouxinol se erguia — perfume na noite. Tão belo! Tão belo e apaixonado que o pescador não pôde impedir-se de dizer, em voz alta, como estava escrito na história: 
— Que bem que canta! 
— Assustaste-me! Não te esperava aqui, a esta hora! — exclamou, rindo, a criadinha que trazia no braço o cesto com a comida para a mãe. — Não foste hoje à pesca? 
— Fui, mas vim esperar-te... Sentemo-nos um pouco. Tenho uma surpresa para ti. 
— Uma surpresa?! Diz depressa! 
— Abre as tuas mãos, para eu depor o meu presente... Vê tu mesma... 
— Oh! que lindo passarinho! É para mim?... Mesmo para mim?! O papinho vermelho parece um coração... 
— E é um coração... o meu, cheio de amor por ti. Trouxe-o para que ele possa fazer ninho na noite dos teus cabelos. 
— Mas só poderei usá-lo fora do palácio — e a criadinha riu. — Vou parecer uma dama... 
— Desata os teus cabelos, peço-te, para que eu o veja brilhar entre eles! 
Então a rapariga desatou os cabelos e o pescador afogou o seu rosto naquela noite que apagava todas as imagens — e onde se fechou também o sonho da menina que, finalmente, adormecia. 
Como o abrir e o fechar de um leque, assim se abriam e fechavam os sonhos da menina com aquele passarinho do quarto da avó — até que ela se cansou e o abandonou ao mistério da sua grácil fragilidade... "

Matosinhos, Maio/88  
Luísa Dacosta Sonhos na Palma da Mão Porto, Edições Asa, 2004 



Sem comentários:

Enviar um comentário